16
jul

Os crimes das grandes companhias farmacêuticas

Artigo de Teresa Forcades i Vila, traduzido e atualizado por Alessandra Russo de Freitas e Rogério Hoefler, publicado no boletim Farmacoterapêutica publicado pelo Centro Brasileiro de Informação sobre Medicamentos (Cebrim)

No breve período de 2000 a 2003, quase a totalidade das grandes companhias farmacêuticas passou pelos tribunais dos Estados Unidos, acusada de práticas fraudulentas. Oito dessas empresas foram condenadas a pagar mais de 2,2 bilhões de dólares de multa. Em quatro desses casos, as indústrias farmacêuticas envolvidas – TAP Pharmaceuticals, Abbott, AstraZeneca e Bayer – reconheceram sua responsabilidade por atividades criminosas que puseram em risco a saúde e a vida de milhares de pessoas.

Quais são essas atividades? Quem sofre as consequências? O que move as indústrias farmacêuticas a atuarem dessa forma? Que respostas estão sendo dadas ante esses abusos e quais ainda se devem produzir? Estudaremos as atuais estratégias dessa indústria e o impacto direto que elas têm na forma como concebemos a saúde e a enfermidade, e nos recursos que temos para promover a primeira e prevenir ou curar a segunda.

O caso da “disfunção sexual feminina”

No ano de 1998, a empresa Pfizer, principal companhia farmacêutica dos Estados Unidos da América, passou a comercializar o Viagra® (sildenafila) para o tratamento da disfunção sexual masculina (entendida como a diminuição ou o desaparecimento da capacidade de ereção). Três anos mais tarde, este medicamento havia sido receitado a 17 milhões de homens no mundo inteiro e o volume de vendas, em somente um ano (2001), superava os quinhentos milhões de dólares.

No ano de 1997 – poucos meses antes do Viagra surgir no mercado – já havia acontecido em Cape Cod(Nova Iorque) o primeiro encontro de especialistas médicos para determinar o perfil clínico da “disfunção
sexual feminina”. A iniciativa, organização e financiamento do encontro estiveram ao encargo de nove companhias farmacêuticas muito preocupadas devido ao fato de que não existia uma definição desse transtorno compatível com um potencial tratamento farmacológico.

Os promotores de tal encontro elegeram entre seus colaboradores diretos as pessoas que deveriam participar do mesmo. O objetivo da reunião era planejar uma estratégia adequada para criar uma nova doença em função dos interesses econômicos da indústria farmacêutica. Um ano e meio mais tarde, em outubro de 1998, celebrou‑se, em Boston, a primeira conferência internacional para elaboração de um consenso clínico sobre a disfunção sexual feminina. Oito companhias farmacêuticas financiaram esta conferência e, dos 19 autores da nova definição “consensuada internacionalmente”, 18 admitiram ter interesses econômicos diretos com as empresas patrocinadoras e com outras indústrias.

Um ano mais tarde, em 1999, foi publicado um artigo na revista JAMA, intitulado “Disfunção sexual nos Estados Unidos: prevalência e variáveis preditivas”, em que se afirmava, supostamente com objetividade científica, que 43% da população feminina dos Estados Unidos sofria da “nova enfermidade”, definida segundo os interesses da indústria farmacêutica. Os passos seguidos para identificar a “população enferma” foram os seguintes:

1) foi elaborada uma lista de sete “problemas”, considerados, cada um deles, com peso suficiente para justificar o diagnóstico da nova enfermidade, se uma mulher os houvesse apresentado durante dois meses ou mais, no último ano;
2) foi aplicado o questionário a um universo de 1.500 mulheres;
3) os resultados foram avaliados de forma que responder “Sim” a somente um dos itens foi considerado critério suficiente para identificar a enfermidade.
Um dos sete itens era a ausência de desejo sexual. Ou seja, as mulheres que responderam que não haviam tido desejo sexual durante dois meses ou mais no último ano, automaticamente – independentemente se estavam de luto pela morte de um ente querido, preocupadas pela falta ou pelo excesso de trabalho, envolvidas em uma relação insatisfatória ou gozando de uma fase de plenitude interior, foram rotuladas de “disfuncionais” e passaram a engrossar a porcentagem de candidatas potenciais ao tratamento que a indústria farmacêutica confiava poder desenvolver em breve.
Dois dos três autores do artigo citado possuíam vínculos financeiros com laboratórios farmacêuticos.

No mesmo ano, em outubro de 1999, aconteceu um terceiro encontro sobre o tema, organizado pela Faculdade de Medicina da Universidade de Boston, porém, promovido e financiado por 16 companhias farmacêuticas. Cinquenta por cento do público admitiu ter interesses na indústria farmacêutica. Do encontro, surgiu o Fórum para a Função Sexual Feminina, que realizou mais duas conferências nos anos 2.000 e 2.001, em Boston, graças ao patrocínio de 20 companhias farmacêuticas, lideradas pela Pfizer.

No ano de 2003, essa manipulação dos critérios médicos em função dos interesses comerciais foi denunciada por Ray Moynihan em uma das revistas médicas de maior prestígio, a British Medical Journal. Os editores da revista receberam em seis semanas um total de 70 respostas e comentários em relação ao artigo de Moynihan. Dois terços das respostas foram de apoio e confirmou a indignação dos médicos diante da referida manipulação ainda que, como deixa bem claro uma das respostas, sem eles não se poderia produzir.

Se os médicos não colaborassem com os abusos das companhias farmacêuticas, tais abusos não aconteceriam. Em dezembro de 2004, a agência reguladora de medicamentos dos Estados Unidos (Food and Drug Administration – FDA) impediu que se comercializasse o primeiro medicamento destinado a tratar a “disfunção sexual feminina” (adesivo para absorção transdérmica de testosterona dos laboratórios Procter & Gamble).

Os responsáveis pelos estudos clínicos – todos financiados e supervisionados pela Procter & Gamble – apresentaram seus resultados de forma tendenciosa, de modo que o que constituíam benefícios duvidosos e alguns mais que prováveis efeitos secundários perigosos (câncer de mama e doença cardíaca) se anunciavam como benefícios claros e riscos desprezíveis.

Até o momento, não se desenvolveu outro medicamento para a disfunção sexual feminina, entre outras razões, devido a uma crescente consciência por parte de todos os atores envolvidos, sobre os efeitos nocivos do excesso de influência das companhias farmacêuticas no exercício da Medicina.

A disfunção sexual feminina (como qualquer outra enfermidade) tem que ser estudada em função dos interesses de saúde das mulheres afetadas e não em função dos interesses econômicos das empresas mais ricas do planeta.

Leia a íntegra na 2ª edição/ 2013 do boletim Farmacoterapêutica publicado pelo Centro Brasileiro de Informação sobre Medicamentos (Cebrim)

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